DEPOIS DO "FIM DO MUNDO"


Há alguns anos Eliel Batista se propôs a escrever uma série de três livros intitulados Porque pensar não é pecado. Cada volume traz intuições, propostas e discussões nascidas de seus estudos e das aulas de Teologia Bíblica ministradas no Instituto Cristão de estudos Contemporâneos (ICEC). Recentemente foi lançado o terceiro e último volume, que trata da leitura e interpretação do Apocalipse. De caso pensado, o último volume é sobre o fim.
               
                Tradicionalmente os semestres de estudos do ICEC têm como abertura um simpósio, o Módulo de Abertura. O último – “Fim do Mundo: sinais, mitos e falso profetismo” – foi ministrado por Eliel a respeito de seu livro. Tive a honra de prefaciar o livro e também de participar do Módulo. Após o fim de nossa semana de conversas, aprendizado, propostas e novas experiências, é bom apontar a direção dos caminhos que foram abertos.

A interpretação

                Trabalhamos nesse tempo em função de limpar o terreno das leituras tradicionais[1] do livro do Apocalipse e encontrar as luzes que Eliel acendeu nos corredores da interpretação bíblica. O movimento do livro não termina nele mesmo. O livro não procura explicar o passado, esmiuçar o futuro e muito menos tem pretensão de “palavra final”. Surpreendentemente, o livro que fala sobre o fim não acaba em seu próprio final, mas nos convida a retornar ao Apocalipse e lermos com nossos próprios olhos, interpretarmos a partir de nossas experiências cotidianas e de fé.

                A disputa pelo passado é uma guerra ideológica: quem propõe uma boa justificativa para o que aconteceu “vence a batalha” e instaura uma nova ordem, a “melhor” ideologia[2]. Eliel foge dessa proposta. O resgate histórico que faz é de nos ajudar a desatar os nós do passado, a não nos tornarmos reféns da história, mas seus parceiros – assim como um terapeuta e seu paciente. Quem antecipa e “sabe do futuro” ganha o poder de homem livre frente aos escravos: sei seu destino e não há como você sair de seu estado, já que nasceu escravo e morrerá escravo. Contente-se com as determinações e espere por elas. Longe, muito longe disso, também não somos guiados por essa trilha: ele não tenta ser futurólogo, apenas acendedor de luz. Como o próprio Eliel adverte em seu livro, nem no passado e nem no futuro há vida, então vivamos a experiência presente, cotidiana. É a partir dela que devemos interpretar o Apocalipse.
               
                O deslocamento da leitura do Apocalipse como uma previsão do futuro para a possibilidade de uma interpretação que parta do hoje, de nossas experiências próximas, é inovadora e fruto de propostas teológicas recentes e emergentes. A crítica de RudolfBultmann à interpretação teológico-acadêmica que se prende ao historicismo[3] (seja do passado ou do futuro já determinado), por exemplo, não tinha encontrado em solo brasileiro um comentário do Apocalipse que a correspondesse. Bultmann, uma “vaca sagrada” da teologia protestante contemporânea, critica a exegese que anula a experiência do sujeito leitor, que tem preferência pela história e não àquele que fala a mim hoje, ao Autor e ao sujeito que se relaciona com Ele.

                Para mais além, num tema implícito na obra de Eliel, essa possibilidade de interpretação livre da necessidade de dominação da história, confiando na experiência de fé cristã e no intermédio do Espírito, também converge com uma das últimas propostas de Paul Ricoeur. O próprio texto das Escrituras pode agir como sujeito, se inovando, renovando, nascendo de novo e nos convidando para uma conversa[4]. O texto fala conosco, nós falamos com e para o texto, discutimos, crescemos, nos tornamos mais íntimos e renovamos nossa esperança. Uma conversa longa e para sempre...

                “O que é conversão?” – perguntou Frei Carlos Mesters em uma palestra no ICEC. “Conversão é uma conversa bem grande...” – o português permite um trocadilho que nos ensina muito. Frei Carlos com simplicidade nos ensina que conversão é constante e necessita da liberdade da conversa, de sujeitos que se relacionam. Se o texto bíblico, seja Gênesis ou Apocalipse, está fechado, enquadrado e impedido de se libertar da história, do passado e do presente – de ser eterno –, não há transformação, mudança de mente, mudança de mundo.

                Nesse sentido, as propostas de Eliel renovam e reanimam a esperança. Com a liberdade de interpretação, há liberdade para que o mundo mude. Além disso, ao tirar da história e dos estudos fechados, determinantes e deterministas, Eliel faz com que o Apocalipse retorne às mãos dos fiéis – ou como falaria Frei Carlos Mesters: a Bíblia do Povo retornaria ao Povo[5]. Como protestantes, deveríamos nos apegar ao “sacerdócio universal de todos os santos” e não permitir que as cadeias dos senhores donos da verdade nos façam seus escravos.

                Paulo já ensinou: “a letra mata, mas o Espírito vivifica”. Isso não deve nos distanciar dos estudos – muito pelo contrário! – mas deve nos ensinar a não nos apegarmos aos literalismos, legalismos e falsos profetismos que se prendem nas palavras e não na experiência de fé. Aliás, devemos continuar os estudos mais do que nunca para não nos permitirmos acomodar, não nos acostumarmos com as letras que temos. A vida é muito grande para nos prendermos aos pontos.

O tempo

                Eliel apresenta o Apocalipse como um livro que recebe esse nome por se propor a um estilo de literatura com um propósito muito específico: assumir do fim e apelar para a fidelidade. Seria como um “sim, vai acabar e não há o que fazer, mas, ainda assim, seja fiel”. É o “contudo” de Rubem Alves[6]. A profecia denuncia a injustiça e nos convida para uma mudança de rumo, abre a possibilidade de transformação. O discurso apocalíptico, por sua vez, assumiria a catástrofe como inevitável, mas ainda convida à fidelidade mesmo no dia mal. É tempo do fim...

                Não era objetivo do livro, claro, pois é um convite à releitura do Apocalipse, a nos livrarmos de correntes e passearmos em outra condição pelo campo agora, e não um exercício de filosofia, mas um ponto que é comentado durante todo o texto e tocado apenas de maneira pressuposta é o “tempo”. Eliel faz uma proposta linda sobre a eternidade e a trabalharmos o tempo de Deus como presença, e não na cronologia comum. Para quem já experienciou a fé e o amor, sabe do que estamos falando. Mas, filosoficamente, num trabalho de fundamentação, ressignificação e justificação do discurso, não há uma abordagem que considero necessária: que sentido daremos ao tempo? “Onde o colocaremos?”

                Cabe a Henri Bergson a crítica ao tempo em obras extensas e absurdamente fantásticas. Convergindo em certo sentido com Eliel, numa explicação bem simplista de minha parte, Bergson demonstra que o que chamamos de “tempo” na verdade não é “tempo”, mas espaço[7]. Quando marcamos o movimento de um objeto em determinado espaço e “marcamos o tempo” entre o ponto inicial e o final, na verdade nosso relógio age como se colocássemos estacas na estrada: não marcamos o tempo, mas os vários pequenos espaços percorridos naquele espaço total que delimitamos. O tempo seria outra experiência, uma experiência mais profunda, que Bergson chama de “duração”.

                Eliel se aproxima e muito provavelmente fala dessa experiência profunda quando fala do “tempo do fim”, quando coloca a experiência da eternidade como a presença de Deus, quando propõe a analogia com o amor: não vemos o “tempo” passar quando estamos apaixonados, por exemplo. A duração é diferente, outra, impossível de ser medida. Nosso calendário, nosso relógio, nosso “passado-presente-futuro” não são o tempo, mas medidas do espaço e das mudanças espaciais.

                Porque dizemos que o futuro está tão “distante”? Espaço. Se pensássemos bem, quando fazemos uma previsão (“colocarei o despertador para tocar às 7:00 da manhã”), já sabemos e determinamos o amanhã, ou seja, ele já é presente, não futuro, pois o tempo não se mede e o verdadeiro futuro vem sem sabermos dele, sem termos o controle. Quando ocorre o inesperado, sentimos o efeito do tempo: o futuro chega, o passado assombra, vivemos intensamente o presente. Seja uma catástrofe, morte, acidente, o gol inesperado do time mais fraco, um presente surpresa, uma carta de amor que simplesmente chega.

                Como diz Emmanuel Levinás, Bergson nos libertou de um mundo sem novidades, em que tudo é premeditado pela ciência e está sob nosso controle[8]. O descontrole nos lembra de nossa condição de vivos e viventes. Como diz o Eclesiastes: “mais vale um cão vivo que um leão morto”. Levinás também fala do tempo, se diz discípulo de Bergson, mas aprofunda ainda mais a proposta (e é aqui que eu queria chegar): o futuro vem a mim e não de mim (como comentava o professor Benedito Eliseu Cintra).

                Cada um de nós vive em um tempo, dura de uma maneira diferente: o tempo de minha vida, minhas experiências e como assinto, tudo isso é diferente do tempo e duração de Eliel. Quando me encontro com Eliel[9] e me relaciono com ele com sinceridade, de “peito aberto”, o tempo dele vem a mim e não de mim. O inesperado acontece, o tempo do Outro chega e me bagunça. Com essa experiência Levinás ensina: o futuro é o Outro. O tempo é uma experiência surgida na relação com o Próximo, é uma relação ética. Quando estabelecemos um tempo “único” ou uma medida (mediação) do tempo, perdemos essa relação com o Outro, essa experiência do tempo Próximo, com o Próximo. Nos distanciamos da experiência de vida fundante e primeira: Eu e o Próximo.

                Devemos amar o Próximo: o tempo do amor, como Eliel propõe, é o tempo de Deus. Tendo o tempo como essa experiência surgida da relação Eu e o Próximo, o sentido da proposta de caminhada de Eliel ganha um brilho diferente, talvez mais intenso. Além disso, sabendo que o futuro é uma experiência relacional, o tempo do Próximo, interpretarmos “o fim está próximo” precisa ganhar novas possibilidades...

O apocalíptico

                Aqui chegamos à importância do Apocalipse e do apocalíptico: colocados a uma distância segura, eles não se relacionam com nossa vida e não nos fazem responsáveis por sua interpretação e experiência. Mas, em outro sentido, trazidos à experiência cotidiana, aos encontros com o Próximo, ao “face-a-face” (termo de Levinás) o Apocalipse ganha vida e o tempo apocalítico uma necessidade ética.

                O Apocalipse, nessa possibilidade, não fala de um espaço determinado para onde estamos indo, mas deve ser lido e interpretado como enraizado hoje nas nossas experiências diárias, comuns. Tempos catastróficos de destruição em nossas relações acontecem. A esperança deve ser anunciada e a salvação vivida. Sem a teologia corrente, uma teologia relacional nasce.

                O apocalíptico – o tempo do fim em que abraçamos a inevitabilidade do desastre[10] permanecendo, ainda assim, fiéis – é fundamental para nossas relações contemporâneas. O tempo com nosso Próximo é apocalíptico: ele vai acabar. Em breve não estaremos face-a-face, a escuridão preencherá o vazio dos olhos e a relação terá fim. Por isso, devemos permanecer fiéis, amantes, esperançosos e fortes em nossas relações. O futuro, o tempo do Outro, o Próximo, está comprometido. Precisa ser cuidado, amado, precisa receber de um outro tempo(o meu tempo) um alento, uma esperança. A possibilidade de novo céu e nova terra precisa surgir em cada encontro, cada olhar, cada instante que dura. Somos mensageiros do Reino, representantes de Cristo. O futuro vislumbra a justiça de Deus em nossas relações próximas, uns com os outros, olho no olho, a cada instante. O instante tem a palavra final.

                Esse deveria ser nosso ponto de partida para a Ética. É dessa experiência que responderemos às necessidades urgentes de nossa época. A água está acabando, as matas sendo destruídas, a humanidade correndo o risco de se destruir. O fim está próximo e todos os que estão vigiando e mantém os olhos atentos clamam por uma nova possibilidade, por novas posturas e propostas éticas. Seja Cristo nossa esperança, a salvação do mundo.

                Sigamos o convite de Eliel a reinterpretarmos o Apocalipse, trabalhemos os propósitos, sentidos, símbolos e significados. Precisamos nos libertar das correntes de escravidão: seja na interpretação bíblica, seja nas propostas e posturas éticas. Livres, nos responsabilizando por nossas experiências de fé e de vida, mantemos vivo o sonho de justiça, a utopia do Reino de Deus. Utopia que não é inalcançável, mas que se abre como possível a cada encontro, a cada olho no olho, a cada instante com o Próximo. O instante tem a palavra final. Vivamos o hoje! Encarnemos o Reino.

Vivemos na esperança...


Bruno Reikdal Lima




[1] Em seu livro, Eliel comenta que escatologia, além de “estudo do fim”, também poderia ser entendido como falar “das fezes”. Limpar o excesso da teologia corrente na leitura do Apocalipse poderia ironicamente ser entendido, também, nesse sentido: estamos colando as fezes teológicas em seu devido lugar.
[2]SlavojZizek trabalha isso no capítulo I “É a ideologia, estúpido!”, em sua obra Primeiro como tragédia, depois como farsa (São Paulo: Boitempo, 2011).
[3] BULTMANN, R. History and Eschatology, The Presence of Eternity, New York: Harper and Row, 1962.
[4] RICOEUR, Paul. Amor e Justiça, São Paulo: Martins Fontes, 2012.
[5] Uma indicação de leitura de Frei Carlos Mesters é trás Por trás das palavras, Um estudo sobre a porta de entrada no Mundo da Bíblia, Petrópolis: Editora Vozes.
[6] Rubem Alves tem a conhecida afirmação de que “Deus mora no contudo”.
[7] Tive a oportunidade de estudar com a professora Marinê de Souza Pereira o Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, de Henri Bergson. O que me possibilitou ler e trabalhar o autor com gosto e encanto. Amigos como Leonardo Magalde e Michelle Mendes continuaram seus estudos e pesquisas com Bergson, produzindo conteúdos novos.
[8] A leitura, interpretação e interesse por Levinás surgiu nas aulas do professor Benedito Eliseu Cintra. Ao invés de citar as obras do autor, citarei aqui a introdução ao pensamento do filósofo escrita pelo professor Cintra: Pensar com Emmanuel Levinas, São Paulo: Paulus, 2009. E o link de um artigo introdutório a Levinás escrito também por Cintra: Emmanuel Levinás e a ideia do Infinito - http://www.pucsp.br/margem/pdf/m16bc.pdf
[9] Sou filho dele. O encontro constantemente...
[10]SlavojZizek se apropria da proposta de Dupuy de “tempo de um projeto”, em que devemos aceitar a catástrofe como destino par alterar nosso modo de viver hoje (projetando num circuito fechado o que acontecerá de catastrófico, imaginamos o que faríamos de diferente para que não acontecesse isso, no sentido de nos imaginarmos no futuro dizendo “se não tivéssemos feito aquilo, não resultaria nisto”). Na piada sobre Hegel que se conta, o filósofo teria em uma aula afirmado que as hipóteses deveriam ser aquelas apresentadas por ele porque “os fatos são estes”. Um aluno pediu a palavra e disse: “mas estes não são os fatos”. Hegel, olhou para o aluno seriamente e retrucou: “então, mude os fatos”.

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