Porque as manifestações fracassam
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Porque as manifestações fracassam no Brasil: a cordialidade que terceiriza o radicalismo
Há um traço recorrente na nossa autoimagem nacional: gostamos de nos ver como cordatos, pacíficos, alegres. O país do “deixa disso”, da conciliação de última hora, do sorriso que resolve. É verdade que há uma fração da sociedade que cultiva outros valores e nos empurra para a violência — basta olhar ao redor. Mas, no geral, preferimos a superfície tranquila. E é justamente aí que começa o problema: confundimos pacificação com omissão.
No discurso, celebramos a moderação. Na prática, terceirizamos o radicalismo. Apresentamo-nos como cidadãos razoáveis, mas apoiamos — muitas vezes no voto e na indulgência cotidiana — lideranças que dizem e fazem o que não temos coragem de assumir em público. Rejeitamos o gesto bruto diante das câmeras; autorizamos, no silêncio da cabine eleitoral, que ele aconteça em nosso nome. Somos moderados no ideário e, ao mesmo tempo, aderimos a um “centrão radical” na preservação do poder: um pragmatismo que, para se manter, normaliza o que deveria nos chocar.
Essa duplicidade aparece em detalhes corriqueiros. Achamos graça de palavrões e minimizamos o bullying como “brincadeira”. Mas, quando a grosseria vira manchete, posamos de bons moços. Repudiamos políticos e pastores que performam o extremismo, enquanto lhes entregamos a procuração para exercer o radicalismo que secretamente desejamos — o soco que não damos, a ofensa que não proferimos, a quebra que não ousamos praticar. É a catarse por interpostas pessoas.
É por isso que as manifestações fracassam. No fundo, não estamos dispostos a bancar a radicalidade que dizemos querer. O que parece apenas desorganização ou falta de pauta revela, na verdade, uma ambiguidade enraizada na nossa cultura política. As ruas esvaziam não por falta de causas, mas por falta de lastro cívico. Queremos o espetáculo da força sem o custo da responsabilidade. Evitamos a violência — com razão — mas não a substituímos por presença política consequente. O vazio entre a indignação performática e o trabalho miúdo da democracia é ocupado por quem vive de manipular frustrações.
Se quisermos romper esse ciclo, precisamos assumir, sem vergonha, o que de fato somos bons em ser: pragmáticos e pacificadores. E compreender que pacificação não é neutralidade. “Isenção” — no sentido de lavar as mãos — apenas fortalece o que sempre esteve aí. Moderação não é ficar em cima do muro; é escolher princípios e defendê-los com firmeza serena. O Brasil não precisa de mais gritos; precisa de maturidade cívica.
Isso se traduz em movimentos simples, mas persistentes: votar com memória, cobrar mandatos com método, recusar o linchamento verbal nas redes, não compartilhar falsidades “só porque favorecem o meu lado”, discutir política sem humilhar pessoas, prestigiar quem constrói soluções e punir nas urnas quem se alimenta do caos. Ir às ruas quando necessário — de modo pacífico e massivo — e, sobretudo, ocupar os espaços entre uma eleição e outra: conselhos locais, associações, escolas, igrejas, coletivos de bairro. Democracia é manutenção, não milagre.
A hora é de abandonar a terceirização da coragem. Se repudiamos o abuso em público, que paremos de patrociná-lo em privado. Se prezamos a paz, que a transformemos em trabalho — diálogo difícil, regra cumprida, política feita com decência. Chega de cordialidade de fachada que serve de biombo para a violência alheia. O país que diz “deixa disso” pode — e deve — dizer “deixa disso” ao ódio, à mentira e ao vale-tudo, sem desistir da firmeza que muda a realidade.
Moderação não é passividade; é direção. Quando descobrirmos isso, deixaremos de produzir radicais por procuração e passaremos a produzir mudanças por convicção. E então, talvez, o Brasil voltará a ser pacífico — não por covardia, mas por escolha.
Eliel Batista
Instagram @profelielbatista
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